Relato de surpreendente robustez e de latente lirismo, Geada (1963) representou a revelação de Thomas Bernhard como um dos grandes escritores do século XX. Um perturbante e isolado vale austríaco, camuflado por uma geada permanente, e a ligação de um estudante de medicina a um pintor aí recolhido há vinte anos numa incessante degradação mental, são os bastidores que sustentam as observações e reflexões sobre a morte, a solidão, a velhice, a educação, a arte e a pobreza (da condição humana, de espírito), que vão percorrendo o romance, e que, aparentemente desconexas entre si, formam um sistema coerente que se confronta permanentemente com a nossa incapacidade de submeter o mundo a um processo de racionalização. Em Geada, está ausente uma intenção deliberada de contar uma história. O estudante escuta o pintor, que vai expondo as suas reflexões e observações sobre as suas dores físicas e existenciais em constante diálogo com o que o rodeia. Quanto à história, tem o leitor de a ir concebendo por si, à medida que os pensamentos dos dois personagens nos vão chegando.
Este é o romance inaugural de uma voz particular e inconfundível da literatura. Porém, até chegar a ele, durante dez anos, Bernhard escreveu vários romances de centenas de páginas que nunca chegou a mostrar, por considerar o resultado final pouco interessante. No caso de Geada, «tive mesmo a sensação, quando terminei, de que isso era qualquer coisa que realmente ainda ninguém tinha feito, e também que ninguém imitaria». «Eu nunca pensei na forma, ela surgiu espontaneamente, segundo o que eu sou e escrevo. Nós temos, claro, modelos e histórias. Mas creio que, antes do romance Geada, no fundo não havia realmente nada do género. Foi a primeira vez que desse modo se escreveu» (Kurt Hofmann, Em Conversa com Thomas Bernhard, Assírio e Alvim, 2006, pp. 51, 29).