Porque tem de ser assim, está escrito, nós somos os soldados de Deus, os mestres da fé, os puros de entre os puros neste mundo impuro. Nas ruas de Kandahar, Zahir já não olha para os véus azulados, essas sombras de silêncio que desfilam como um exército de vergonha, vergonha de se cruzar com os homens, vergonha de se dirigir aos comerciantes, de cabeça baixa, vergonha de pisar os passeios com sapatos que já não são envernizados, nunca se sabe, isso poderia ser interpretado como um sinal de ostentação e de prazer. Nas ruas de Kandahar reina uma lei de obscurantismo, a dos vencedores, e o próprio Zahir também baixa por vezes os olhos, como um vencido, um deserdado do desejo, um condenado da paixão. Nos tempos do profeta, os poetas do Hedjaz tinham inventado o ghazal, os versos de amor sobre o amor cortês, e elogiavam o amor puro, cuja apologia acompanhou o Islão conquistador. O desejo da carne enriquecia assim a comunhão espiritual. No emirato dos talibã, o amor encontrou uma fronteira, perseguida até ao olhar, considerada como um ultraje e contrária à ideia de submissão. O desejo está enterrado, à excepção do dos mullahs, as Xerazades estão prisioneiras, os ardores estão apagados, a própria essência da paixão amorosa está banida. Os turbantes negros mataram o amor. Na imensidão seca e desértica do Afeganistão, vive uma ave em vias de extinção, o famoso Falcão Peregrino, por muitos chamado o Falcão Afegão. Livre e única no seu modo de vida, esconde-se nas suas montanhas e desertos e, quando estende as asas para voar, é capturada, aprisionada e cerceada da sua liberdade. Por entre o fanatismo e as proibições, os massacres e as execuções, os afegãos são como os falcões. Nascendo livres, são aprisionados por um regime de totalitarismo e intransigências, onde a mais pequena falta conduz à morte e a sombra de um turbante negro se abate sobre os homens, como a sombra dos abutres sobre os falcões. O Falcão Afegão oferece-nos um relato em primeira-mão de um país prisioneiro dentro de si mesmo, um país de absolutismo religioso, um país que, a pouco e pouco, começa a libertar-se. Olivier Weber é repórter do jornal Le Point. A sua cultura, o seu gosto pelos outros, a sua tenacidade, permitiram-lhe desenhar o Afeganistão actual: delirante e sedutor, objecto de escândalo aos nossos olhos – um país onde reina o absurdo.